Governação de Sócrates "é tecnicamente errada e arrogante"
Luís Campos e Cunha, o ministro das Finanças com o mandato mais curto nos governos eleitos desde 1974, recebeu o i no seu gabinete na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Ao longo de uma hora e meia de entrevista, o economista e ex-ministro de José Sócrates sublinhou o seu desânimo face à situação política e económica portuguesa, fazendo um julgamento impiedoso do governo a que já pertenceu, assim como da oposição. A moral da história, segundo Campos e Cunha, alinha na opinião cada vez mais ventilada no país: das próximas eleições legislativas dificilmente sairá uma alternativa política viável.
O que mais o preocupa em Portugal?
Estou talvez a atravessar o período de maior desalento, de alguma angústia, porque do ponto de vista económico a situação é muito grave. As políticas seguidas de combate à crise parecem-me desa justadas e as medidas para o período pós-crise ainda mais desajustadas. Mas estou muito mais preocupado com a situação política porque não vejo do ponto de vista político grandes alternativas e possibilidade de sairmos [das eleições legislativas] com uma alternativa credível e viável. Avizinha-se uma situação em que não haverá uma maioria absoluta - que não é em si um valor, mas a governabilidade é um valor - e nenhum dos líderes é inspirador para a maioria dos portugueses. Existe uma falta de alternativas reais, seja mais à esquerda ou mais à direita.
A maioria absoluta é ou não o cenário ideal?
Não é obrigatório que seja, e penso mesmo que, nas circunstâncias actuais, um exercício de humildade dos partidos no sentido de uma coligação seria provavelmente o melhor para o país. A maioria absoluta - seja de um lado seja de outro - significaria uma arrogância de poder e mais uma vez uma grande dificuldade em aceitar conselhos sobre as medidas de que o país necessita.
Que coligação?
Uma grande coligação poderia ser como no início dos anos 80, do bloco central. Eu não gosto do bloco central, e muito menos dos interesses que se movem à sua volta, mas a verdade é que em momentos de maior crise essa solução funcionou razoavelmente. Já fui mais crítico desta alternativa.
Mas tem consciência de que é uma solução inviável com os actuais líderes do PS e do PSD?
Com estes líderes sim, mas podem surgir novos líderes, o país exige.
Na sua opinião, estes não são então os líderes ideais para irem a votos em Setembro?
Não gosto de personalizar a questão, mas de facto a minha visão do primeiro-ministro e candidato do Partido Socialista é conhecida...
Qual é?
É um estilo de governação que não enfrenta os problemas do país de uma forma que eu penso que seja a tecnicamente correcta e politicamente acertada. É feita de uma forma politicamente arrogante e tecnicamente errada.
José Sócrates foi um mau primeiro-ministro?
Julgo que poderia ter sido muito melhor. Teve condições absolutamente únicas e excepcionais para ser primeiro-ministro e fazer um bom trabalho. Mas as medidas fundamentais foram tomadas em 2005 e daí para a frente foi tudo muito mal gerido, tirando um ou outro caso de medidas mais profundas, como a reforma da Segurança Social.
Neste momento e tendo em conta as sondagens, a sua expectativa é que o PS venha a ganhar com maioria relativa?
É o cenário mais provável. O PS perdeu as eleições europeias, mas com um nível de abstenção muito elevado. Pelo facto de esse cartão amarelo já ter sido mostrado, provavelmente essas pessoas tenderão nas legislativas a votar PS. Mas será longe de uma maioria absoluta, o que significa que alguma coisa terá de ser feita para se poder governar o país. O PS não se pode aliar ao PCP nem ao Bloco de Esquerda, que não têm sentido do ponto de vista económico e político.
Mas representam já uma fatia importante do eleitorado, ou pelo menos representaram nas eleições europeias?
Pois, mas o Bloco não é um partido que tenha um programa. Tem causas. E é fabricado por ex-maoístas e ex-trotskistas, nunca arrependidos.
Também os há noutros partidos?
Mas esses são arrependidos, apesar de tudo. A história destes dois grupos é desde as suas origens feita de lutas fratricidas brutais. Eles não têm capacidade para fazer um programa. O Bloco de Esquerda é um grupo de protesto, de causas. Não é um partido com um programa, e é muito difícil saber exactamente que coligação se poderia fazer. O PCP tem uma clivagem grande em relação ao PS, também ela fundada na história. Portanto, coligações aí não podem existir. Podem depois existir outros arranjos, como acordos parlamentares ou mesmo uma coligação com o PSD...
Com um novo líder do PSD...
Ou com um novo líder no PS. A política tem muitas surpresas.
Já disse o que pensa de José Sócrates. E de Manuela Ferreira Leite?
É uma senhora da sua geração, que tem muito pouco a dizer aos portugueses neste momento. E das poucas vezes que fala tem depois de emendar três vezes. Não tem nada a dizer sobre a língua, sobre a cultura, sobre a presença de Portugal no mundo. Tem um discurso muito centrado na questão orçamental. E eu estou à vontade para o dizer porque tenho feito um discurso preocupado com questões orçamentais - mas a política não acaba aí.
Fala do desencanto face à situação actual. Voltaria a ter um papel activo na vida política portuguesa?
Eu tenho um papel activo na vida política portuguesa - escrevo todos os 15 dias num jornal. É uma das minhas contribuições cívicas.
Mas regressaria a um governo?
Como deve imaginar, gato escaldado de água fria tem medo. Eu não tenho medo, mas tenho a experiência do que é estar na política, no coração de um governo. Certamente não repetiria alguns erros de ingenuidade. Recusei muitos lugares públicos até aceitar ser ministro das Finanças, porque nunca tive uma carreira política. Quem quiser fazer carreira política inscreve-se nos partidos e vai a votos. A minha carreira é na universidade. Servi o país em certas ocasiões, no Banco de Portugal [como vice-governador] e depois no governo, porque achei que podia dar uma contribuição fundamental. E de facto as grandes medidas [do actual governo] do ponto de vista orçamental foram tomadas nos primeiros quatro meses, quando eu lá estava.
Mas isso não impede que haja uma relação informal com a política. Nos últimos 15 anos, todos os líderes do PS me pediram opiniões.
Com excepção destes últimos quatro anos, em que o PS provavelmente não lhe terá pedido a opinião?
Não... mas faço parte da comissão de honra de apoio a António Costa, com muito gosto.
O que aprendeu com os quatro meses que esteve no governo?
Eu disse uma vez que estar no governo é como estar no país das maravilhas e as pessoas entenderam mal. Quis dizer que é como passar o espelho e ver que todas as regras de relacionamento se alteram. Pessoas que conhecemos no dia anterior mudam quando se passa o espelho - muda tudo, as leis da física são outras. A lógica de funcionamento das pessoas e das instituições é diferente da que nós vemos do lado de fora, mesmo quando observamos de muito perto.
Leu o programa do PS?
Não. Li os cabeçalhos na imprensa. Não me suscitou particular curiosidade.
Porque é que não lhe pareceu interessante?
Desde já por manter os grandes projectos [de obras públicas]. Estou firmemente convicto de que se os grandes projectos públicos forem todos para a frente nós vamos ter um longo período de estagnação económica. O TGV significa que teremos de pagar indemnizações compensatórias permanentemente, as auto--estradas vão estar vazias e tudo vai sair dos impostos. Vamos introduzir uma rigidez brutal nos orçamentos futuros - e os orçamentos já são difíceis de fazer porque há uma grande rigidez. A dívida pública é cada vez maior, os juros serão cada vez mais elevados, os salários dos funcionários públicos têm de ser pagos, tal como as pensões, e além disso tem de se pagar as parcerias público-privadas (PPP). O que sobra para gerir depois disto é muito pouco, o que significa que o investimento público será cortado, que as prestações sociais vão ser reduzidas e a culpa disso estará nas decisões tomadas hoje.
Mas se só tiver em conta este nível alto de endividamento público - a par do externo - não há o risco de um governo cair numa situação de paralisia?
Os níveis de endividamento são elevados e preocupantes, mas não são desastrosos. Um nível de 85% [peso no PIB] de endividamento público não é ainda insustentável. É uma situação difícil e que deve ser tida em conta desde já. Representa níveis de risco mais elevados e vamos pagar juros mais elevados.
Mas o valor real da dívida pública não é mais que 85% do PIB? Não deveríamos contar com os encargos das PPP e com a dívida das empresas do Estado?
Claro, com isso pode somar mais 10% do PIB, pelo menos.
Segundo as nossas contas, dá um peso total de 112% do PIB.
112%. Admito que sim, e a isso ainda tem de somar cartas de conforto e os avales do Estado. Isto reforça o meu ponto. Portanto, cristalizar o programa de auto- -estradas e o TGV significa empenhar o futuro do país irremediavelmente. Durante 20 a 30 anos Portugal vai estar a trabalhar para pagar o buraco financeiro que vão ser estes projectos.
Os custos são directos e mais fáceis de medir que os benefícios, como a melhoria da qualidade de vida ou a redução das emissões de CO2. Estes entram na sua análise?
São difíceis de medir, mas não é impossível. Há que medi-los contra os custos. [No caso do TGV] pode ser que seja necessária toda uma linha nova, ou apenas alguns troços ao lado da actual de modo que os comboios locais ou de mercadorias possam ser ultrapassados. Há várias soluções técnicas que não conheço. Tecnicamente até se pode fazer um TGV para as Berlengas, agora não é do ponto de vista económico um projecto rentável. Alguma coisa tem de ser feita - o que não quer dizer que se faça qualquer coisa e que se faça necessariamente tudo novo.
O PS tem um programa eleitoral que aposta muito nos apoios sociais e quer manter as grandes obras. Como vai ser possível fazer isto tudo sem subir os impostos?
Isso é gelo quente. Isso é querer o bolo e comê-lo: não é possível. Se estas obras forem para a frente, o investimento público e os gastos sociais a médio prazo estão comprometidos.
Mas não há então mais margem para agravar a carga fiscal?
Não há muita margem. Primeiro já temos um nível de fiscalidade muito razoável. Segundo: temos ao nosso lado um dos países que tem menor fiscalidade.
Mas que provavelmente será forçado a subir?
Sim, mas em Espanha os níveis de fiscalidade são dos mais baixos da zona euro e temos de ser concorrenciais.
As contas públicas voltaram agora ao debate. O resultado do governo nesta frente é bom?
Em 2006 e 2007 houve efectiva consolidação das contas públicas, mas em 2008 não: todos os indicadores apontam para uma alteração significativa da evolução da despesa. A segunda parte do programa [Programa de Estabilidade e Crescimento 2005-2009], que tinha sido delineada em meados de 2005, passava por uma maior contenção da despesa. Em 2008 isso acabou e o governo entrou em campanha eleitoral, com a redução injustificada do IVA de 21% para 20%. E depois veio a crise.
Mas é razoável pedir a um governo que resolva o problema estrutural das contas públicas em quatro anos?
É preferível resolver em quatro a resolver em oito. É mais fácil ter uma política relativamente drástica durante três ou quatro anos, e com isso resolver o problema das contas públicas, do que tentar resolver com pequeninos passos. A primeira coisa que acontece é uma resistência política brutal. Depois as próprias instituições políticas vão-se adaptando e arranjando pequenos truques legais e contabilísticos para tornear as alterações na despesa.
O impacto da recessão nas contas públicas era inevitável, mas a crise foi um argumento conveniente?
Em 2008 a economia portuguesa não foi muito afectada pela crise, e nessa altura o défice orçamental sem receitas extraordinárias foi de 3,7% do PIB, de acordo com as contas do Banco de Portugal. Claramente já tínhamos entrado outra vez numa situação difícil do ponto de vista das contas públicas.
Então a crise não explica tudo?
A crise não explica tudo. A crise internacional é uma espécie de cortina de fumo sobre as nossas debilidades. Quando acabar, a crise nacional vai ressurgir, exacerbada por algumas medidas erradas de política contra a crise.
Que medidas erradas são essas?
A estrutura das políticas foi toda baseada na despesa, que demora a chegar ao terreno. Deveria ter sido também baseada em cortes temporários em alguns impostos ou taxas, através de medidas delineadas para ser temporárias e facilmente reversíveis. Mesmo na despesa devia ter tido uma panóplia de instrumentos que passavam por mais gastos em áreas para que tenho chamado a atenção, como por exemplo o património cultural. Depois justificar-se-ia um corte temporário - sublinho temporário - por um ou dois anos, em alguns impostos ou taxas, como a taxa social única. Isto não punha em causa a sustentabilidade da Segurança Social, como chegou a ser dito, e aliviaria era o custo do trabalho nas empresas. Poderiam ter-se aliviado ainda alguns impostos sobre a classe média, particularmente afectada pela crise - estou a pensar numa entrega de um determinado montante às pessoas que pagam IRS, uma entrega de por exemplo 200 euros. Em Espanha seguiram esse caminho.
Tem-se falado muito em classe média, precisamente a propósito da elevada carga fiscal?
Agora fala-se muito em taxar os ricos, mas os ricos não são as pessoas que pagam IRS. Os ganhos dos ricos são lucros e ganhos de capital. Estes genericamente estão isentos e os lucros pagam taxa liberatória de 20%. Ninguém fica rico a trabalhar. É-se rico quando se tem capital - e as remunerações do capital são menos taxadas ou pagam menos impostos que os rendimentos do trabalho.
Os rendimentos de capital deveriam ser taxados a um nível mais alto?
Os rendimentos do capital são lucros, juros, mais-valias, e esses ou não pagam imposto ou pagam impostos muito baixos. Deveríamos considerá-los em pé de igualdade com os rendimentos do trabalho. Porque é que o rendimento do trabalho, mesmo um bom ordenado, paga mais impostos que uma mais-valia de uma empresa cotada em bolsa? Outra coisa são os impostos sobre a riqueza, que em Portugal se têm traduzido apenas em impostos sobre o imobiliário, mais fáceis de cobrar. Isso está errado: mais uma vez, do ponto de vista fiscal ter uma casa, para habitar, ou mesmo uma segunda casa, é completamente diferente de ter acções de uma empresa.
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